quarta-feira, 20 de junho de 2012

Vazio


Baseado na musica “Minha história” de Chico Buarque.

Com os olhos fixos no horizonte vazio, esse homem rústico, operário do mar, a encontrava na lembrança do porto, com as duas mãos para o alto sem saber se dizia adeus ou “não vá”... Aportava poucas vezes e sempre se entregava a esse amor sem descanso. Pouco conversava, quase não havia palavras em seu mundo, um mundo de ouvido. O mar era seu chão firme, a agua, sua terra, e ele não se demorava por aqui. Sentia-se seguro fitando o horizonte vazio, seco de palavras, com ela na lembrança.
Ela ficava olhando longe, longe... O mesmo mar. Sozinha, oca de pensamentos, muda em si. Seu velho vestido de viscose, presente dele, usado mas pouco puído, estava ficando curto, era o corpo que crescia, era o grão dele que crescia. A esperança da sua volta, e a certeza de sua curta estada, fazia com que ela ficasse ali, parada, sentada na pedra do porto, numa espera fútil.
Quando nasci ele não estava nesse mundo, como sempre. Nem no dele. Deve ter partido para o horizonte – vazio...!
Ela me enrolhou em uma espécie de manto, e como não sabia o que fazer, nem comigo nem com ela, me ninava cantando “Ronda”. Realizou, em seus abismos internos, que eu era um tipo de santo, uma criança que surgiu do nada. Confidenciou-me ser a Imaculada, e eu o menino Jesus. E assim me batizou.
Hoje trabalho no mar, não olho o horizonte, evito lembranças. Quanto aporto, vou de bar em bar, me embriagar, às vezes urro, às vezes brigo. No bar me sinto seguro, ao lado dos ladrões, dos loucos, dos infelizes. Companheiros de copo e de destino. Todos, como eu, cumprindo sua sentença, caminhando em direção ao vazio.

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

Colônia

Nasceu em Campos, estado do Rio, filho de Libaneses que se perderam a caminho de Foz do Iguaçu. Migrou para Rondônia no inicio dos anos 80 levado pela promessa militar de expansão do norte. Lá, entre cabruncas com plantações de milho, amendoim, feijão, mandioca... Casou com uma nativa, linda índia com medidas perfeitas e inocência inebriante.

Hoje mora no Rio Grande do Norte, com o filho, belo exemplar da mistura inusitada de raças casado com uma mineira, herdeira rica de um cafezal que a vista perde. Construíram uma pousada, na beira mar em São José do Gostoso. Gasta a maior parte do seu tempo sentado na varanda do seu quarto, olhando o mar e tentando saber em qual direção ficam as famosas plantações de Cedros das terras de seus pais.

terça-feira, 25 de outubro de 2011

Rima

E entre eles havia um em especial, um tipo indiano que cumpria a função de garçom durante as tardes, já que as manhãs eram gastas no sono depois de passar as noites servindo as damas solitárias ou os rapazes curiosos em descobrir os prazeres que a mesma carne pode lhes proporcionar. Chamavam-no, os outros, de Rima; talvez por conta da forma especial que pronunciava os "rs": "senhorrrr, precisa de algo mais, senhorrr?". Os outros todos não me atraiam a atenção, eram demasiado comuns, e nas suas organizadas vestimentas, palavras polidas e sentimentos puros, desapareciam entre si.

Rima destoa. Sujo, cutuca o ouvido com o mesmo palito usado para tirar as sobras do almoço de entre os dentes, depois o lança ao chão e cospe de lado, na calçada, enquanto admira os cartazes de filmes pornôs do Cine Ideal. Fala sem mínimo de consciência - como se vomitasse as palavras. Como se elas não passassem pelo cérebro antes de vir a publico.

Eu o observava todas as tardes e noites, exceto quando meu oficio de amolador de tesouras me tomava à atenção. A propósito, permita apresentar-me, Arlindo Maria, seu criado. Datilografo de formação, amolador por necessidade. Nascido poeta de rua como meu pai, morto "de nada" aos 99. Com ele aprendi duas coisas: primeiro, o poeta de rua precisar ter o dom da observação, o dom de "saber-enxergar-os-outros"; segundo, conseqüência natural do primeiro: não pode sair da rua. Por isso eu viajo e observo, escrevendo e amolando.

segunda-feira, 17 de outubro de 2011

Seco

Uma cicatriz de mordida de porco nas costas era sua marca. Impressionava, principalmente quando ele caminhava pela rua da feira sem camisa e com uma faca enfiada no vinco traseiro da calça.

Mas era um bom homem, honesto e justo, tanto quanto pode ser um homem. Especialmente naquela terra, onde pela palavra se morre e o contrário.

Era filho de lavradores de terra alheia, ocupação principal, contudo ajudavam na casa sede, faziam mandados na cidade, e outras atividades menos declarantes.

O pai era próximo do Dono, se fartavam juntos de mulheres e cachaça.
A mãe nem sabia que sofria.


Ele e os irmãos, não se lembra quantos, foram criados no "te-vira", ou no "como-deus-quer", dependendo de quem perguntava.

De resto, o chão seco, os galhos secos, a boca seca, só os olhos, de quando em quando, vertiam alguma água.

terça-feira, 13 de outubro de 2009

Atropelo

Hoje, antes de morrer de queda, atropelei um cachorro. Chegamos juntos e ele não sai do meu pé. Ainda não me incomoda, mas sei que irá. Tem dias, como este, que morrer é complicado... O que normalmente é tão facil e simples se transforma em um martírio, e nem cristão sou. Espero morrer melhor amanhã... Sim, amanhã será um dia melhor para morrer. E o Cachorro, espero saia do meu pé.

segunda-feira, 3 de agosto de 2009

"Cabamacho"

Otacílio, vulgo Ciço, guitarrista freelancer de banda de forró. Morador do morro "Pau do Urubu", onde nasceu e foi criado. Lá conheceu Matilde, uma branca de cor e preta de vontade. Tinha mamas para alimentar uma nação e ancas que serviam como ponto de referência. Ele se apaixonou. Ela gostou. Se juntaram.
No mês da fogueira, Ciço viajava, dia e noite, tocando seu "pau eletrico", até aquela noite, quando não recebeu a paga pelo show e resolveu debandar antes do fim da festa. Nesse dia ele chegou em casa em hora diferente. Lá encontrou o que segundo os companheiros de cachaça e salão, homem nenhum deveria encontrar: sua mulher trepando com o "Só osso", sujeito despreparado para a vida, bebia tanto que nem sóbrio prestava. Não se sabe nem o nome verdadeiro do individuo, era "Só osso". Avistando aquela cena teve a mais criativa das idéias que um corno pode ter: Sacou do vinte e dois escondido nos fundos da calça, mandou a mulher levantar da cama e pegar o tubo de "colatudo".
"Só osso" nem murchou, ainda tava de pau duro quando a mulher, com a mão empapada da cola, agarrou, e lá ficou.

segunda-feira, 26 de janeiro de 2009

Aventurança.

Nascido órfão na Rua da Areia.
Mãe, ex-prostituta e cozinheira de puteiro, morta no parto; pai, desconhecido. Levado para um orfanato em um terreiro de umbanda - promessa feita pela mãe de santo: cuidar de 99 crianças abandonadas. Ela mesma, a mãe de santo, uma morena reboculosa casada com um italiano do sul, que batizou a criança: Pio.
Cresceu, se criou, virou escrivão da policia civil. Bebia pouco, comia pouco, pensava pouco. Um dia foi encontrado pendurado pelo pescoço na viga que sustentava o teto do seu quarto. Quem o encontrou, ainda com o corpo estrebuchando, foi a diarista, Dona Esperança, que naquele dia chegara tarde.

domingo, 7 de dezembro de 2008

Vida de boneca

Acordou as nove.
Tivera uma noite excelente: amor, papo, um bom vinho e ainda dormira cedo.
Irá correr no calçadão da praia, bem próximo a sua casa...
Alonga na academia do prédio, onde ainda tem uma boa piscina e duas saunas, coloca o fone do mp3 no ouvido e segue ouvindo Ed Mota.
Pensa em como o ano foi bom, seu filho se recuperara daquele problema sério de saúde, seu marido estava mais companheiro do que nunca, e ela tinha reconquistado a vaga de chefia que havia perdido no ano passado quando teve que parar tudo pra cuidar do filho doente.
A noite iria encontrar os amigos na casa da mãe, que estava muito bem depois da morte simples e sem dor que o pai tivera, ela se recuperara bem da ausência dele.
Sua satisfação fazendo esse balanço enquanto corria na calçada com a brisa do mar e o silencio que só era possível naquela parte privativa da praia, era imensa, suas mãos chegavam a suar e corria um pouco mais quando pensava em quanto sua vida estava boa naquele exato momento.
Era domingo, já correra seus trinta minutos e iria preparar um bom e completo café da manhã, acordar o filho e levar na cama para o pai. Depois, juntos, iriam ao Shooping nalguma livraria onde os três se perderiam entre os livros durante algumas horas, ao cinema ver um bom filme de animação, e, antes de irem pra casa da sua mãe, um almoço em um desses restaurantes naturais. Enfim, seria um domingo perfeito, como tinha sido todo o ano que passou.
Perdida em pensamentos, atravessa a rua principal que liga o calçadão a calçadinha... nem nota o caminhão, e creio que nunca notará.... seu corpo foi atirado, sem vida, a pancada já havia determinado a hora da morte, caiu a uns 10 metros, como uma daquelas famosas bonecas norte-americanas largada sozinha no fundo da caixa de brinquedos depois que lhe arrancaram as pernas.

sexta-feira, 14 de novembro de 2008

Indivíduos originais, ou originários?

Que gente é essa que ainda vem ao aeroporto assistir a pousos e decolagens? Que gente simples é essa que nos faz sentir seguros e protegidos? Que o critica com cuidado e ruidosamente o elogiam, com orgulho de ser seu amigo. Chegam até te convencer das qualidades que, você sabe, não possui. Ou eles estão certos? Será essa a gente originaria que precisamos reencontrar em nós?

segunda-feira, 13 de outubro de 2008

Indivíduo livre

Creio que não somos e nunca seremos livres, o homem pensa, acumula, passa, o outro recebe o que não pediu e continua passando, geração a geração... Diria: “que apareçam os que vieram antes, e bem antes, quero devolver-lhes o fardo e seguir livre”. Porem não há quem ouça...